“Nada é de natureza assim tão casta”:
a produção artística de Miguel Anselmo
As séries de Miguel Anselmo têm como principal força motriz a fragilidade e a efemeridade do ser, e buscam exteriorizar a profunda vulnerabilidade do homem à mercê da ação do tempo. Assim, como uma espécie de raio-x da essência de vidro que configura o ser humano e todos os seres viventes, suas séries Fósseis contemporâneos e De todo coração conduzem o espectador a uma indagação controversa, que busca ampliar a esfera das relações simbólicas: elas retiram a objetividade dos elementos e as deslocam a outro terreno, delicado e questionador, que evoca conceitos amplos como vida e morte. Outros valores igualmente essenciais perfazem a iconografia do artista: a liberdade ou a ausência dela, retratada em Pardais; a necessidade do autoconhecimento e do reconhecimento do outro no estabelecimento das relações afetivas, explorada em Uns; o sexo como fonte vital de perpetuação, explicitado em Rubor e Cruising.
Não só os vínculos sociais, mas também a ilusão dada pela religião e as carapaças que o homem constrói são evocadas nas obras do artista. Suturas, inspiradas no ato primitivo de bordar, no convívio familiar, tornam-se ossos; pinceladas precisas enganam os olhos e se transformam em azulejos, madeiras e papéis de parede, que transmitem a ideia de proteção e acolhimento; sagrados-corações são desenhados sobre tábuas de corte para mostrar que a fé pode ser um alimento temporário e suprir a necessidade de transcendência do homem em estado de abandono.
Tais elementos do plano das ideias, traduzidos em símbolos pelo apurado rigor técnico do artista, levam o espectador a enxergar sua configuração física como algo que tem validade condicionada à natureza, uma tentativa de desmistificar o heroísmo em voga na sociedade contemporânea. Miguel Anselmo coloca em xeque a noção de indestrutibilidade, e afirma que se a princípio ela pode parecer atraente, a longo prazo revela-se ilusória e até mesmo perigosa, dada a nossa compleição débil. Como afirma Carlos Drummond de Andrade em seu poema “Relógio do rosário”: “E nada basta, nada é de natureza assim tão casta/ que não macule ou perca sua essência ao contato furioso da existência”.